MANAUS (AM) – Na última semana, o governador Wilson Lima (União Brasil) causou controvérsia com uma declaração sobre o uso de linguagem neutra, afirmando que “essa não representa as diretrizes, os valores, nem a orientação do nosso governo” e anunciando uma sindicância para apurar seu uso na comunicação oficial. À primeira vista, a fala pode soar como uma questão cultural ou ideológica — mas, para muitos críticos, ela serve como distração de problemas muito mais graves sob sua gestão.
Enquanto ele debate pronomes, dois processos judiciais no Amazonas movidos pelo Ministério Público Federal (MPF) apontam para crises profundas na saúde pública sob sua administração: a Ação Civil Pública nº 1001352-81.2018.4.01.3200, sobre falhas no sistema de registro e tratamento de câncer, e a ação nº 1053641-44.2025.4.01.3200, que busca dados da tragédia da falta de oxigênio na pandemia de COVID-19.
Na Ação 1001352-81.2018, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MPAM), exige a implantação plena do Sistema de Informação do Câncer (Siscan) no estado.
O Siscan permite monitorar o diagnóstico, o início dos tratamentos e a evolução dos pacientes com neoplasias malignas, conforme a Lei federal 12.732/2012, que determina que o tratamento oncológico público deve começar em até 60 dias após confirmação diagnóstica.
Segundo o MPF/MPAM, há falhas operacionais, estruturais e administrativas: prestadores terceirizados (como o Hospital Delphina Aziz e o Hospital Universitário Francisca Mendes) não registram exames regularmente no Siscan por falta de pessoal cadastrado e por problemas contratuais.
Essas falhas têm consequências graves: atrasos no atendimento, interrupções no tratamento, carência de insumos (medicamentos quimioterápicos, equipamentos), e falta de profissionais — o que compromete a efetividade da lei e prejudica pacientes oncológicos.
A Justiça determinou que o Estado do Amazonas e a Fundação Centro de Controle de Oncologia (FCecon) regularizem o Siscan, integrem todos os prestadores terceirizados e garantam o início do tratamento em até 60 dias. Há ainda multa por descumprimento de decisão anterior.
Esse é um problema estrutural e de longo prazo, e não apenas uma falha pontual: revela negligência na garantia de direitos dos pacientes, sobretudo os mais vulneráveis.
Em 2025, o MPF moveu ação federal para obrigar a ABIN a entregar relatórios que supostamente alertaram, com antecedência, sobre um iminente colapso de oxigênio no Amazonas durante a segunda onda de COVID-19, em janeiro de 2021.
Segundo reportagens, a ABIN teria produzido relatórios entre março de 2020 e janeiro de 2021 apontando risco de saturação da rede de saúde e falta de oxigênio.
O MPF quer não só os relatórios propriamente ditos, mas também comunicações que mostrem se e como esses relatórios foram repassados às autoridades federais, estaduais e à prefeitura de Manaus.
A ABIN negou o fornecimento, alegando que não está sob controle externo do MP, mas apenas do Congresso, e que a liberação desses relatórios depende de decisão da Casa Civil.
O MPF argumenta que essa recusa viola prerrogativas constitucionais e a Lei de Acesso à Informação – especialmente porque os documentos são cruciais para a reparação civil das vítimas da tragédia. Pede-se que o diretor-geral da ABIN entregue os documentos no prazo de 48 horas, sob pena de multa diária.
Essa investigação é diretamente ligada à tragédia sanitária: em janeiro de 2021, Manaus viveu um colapso na rede de saúde, com hospitais ficando sem oxigênio.
Investigações do Ministério Público e da Defensoria Pública apontam que mais de 60 pessoas morreram em todo o estado por conta da falta de oxigênio. Mais de 500 pacientes foram transferidos para hospitais em outros estados.
A ação visa não apenas reparação, mas também reconstrução da verdade sobre responsabilidade institucional: quem sabia, o que foi advertido, se houve omissão ou negligência.
O foco de Lima na linguagem neutra soa desconectado das prioridades mais urgentes para muitos cidadãos: enquanto ele investe energia política em simbologia, há acusações sérias de que seu governo falhou no gerenciamento de crises de saúde que mataram gente.
A crise de oxigênio enfrentada pelo Amazonas não foi surpresa para alguns: há relatos, segundo a ABIN, de alertas antecipados. A negativa de transparência pode indicar tentativa de encobrir falhas graves — uma investigação de sindicância sobre “linguagem” pode desviar a atenção dessas falhas.
Há também críticas sobre a gestão cotidiana da saúde: vereadores e lideranças locais já apontaram que o estado da saúde pública no Amazonas continua precário, com pacientes sofrendo por falta de acesso e demora em cirurgias.
No contexto da pandemia, estudos apontaram que a gestão política do Amazonas contribuiu para a gravidade da segunda onda: houve desdenho de riscos, decisões tardias e falta de planejamento, apesar de sinais já visíveis.
Ao anunciar uma sindicância sobre a “ideologia dos pronomes”, Lima pode estar usando uma estratégia política: mobilizar uma base conservadora, ganhar visibilidade cultural e ideológica, enquanto adia ou minimiza reprovação por questões práticas que afetam vidas.
Essa abordagem pode ser vista como politicagem simbólica: ideologia de linguagem neutralizada, mas saúde pública negligenciada.
Para quem cobra resultados concretos (vítimas do câncer, pacientes de COVID, familiares das vítimas da asfixia), a retórica sobre pronomes é insuficiente — e até ofensiva, se desloca o foco das pessoas que ainda aguardam justiça ou tratamento digno.
As ações do MPF mostram que existe uma demanda legítima por transparência e reparação. Exigir os relatórios da ABIN é também uma forma de preservar a memória da tragédia: entender quem sabia, quando soube, o que foi feito ou deixado de fazer.
A implementação adequada do Siscan é, por sua vez, essencial para garantir que futuros pacientes de câncer no Amazonas não sejam invisibilizados pelo sistema — nem penalizados pela falta de dados ou gestão incompetente.
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