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Polรญtica

O idiota

(Foto: Freepik)

Por Carlos Santiago*

Era um indivรญduo respeitado. Pelo menos ele acreditava nisso. Orgulhava-se de comandar generais, doutores, professores e tantos outros graduados. Gostava de dizer que era ele quem mandava e que nรฃo abria mรฃo de sua vontade. Todos os seus comandados, por mais inteligentes que fossem, quando iam fazer parte de sua equipe, recebiam logo a ordem: aqui quem manda sou eu! E era impressionante como sua equivocada forma de ver o mundo e sua curtรญssima inteligรชncia tragava as outras inteligรชncias. Os seus diversos subordinados, todos, sabiam que nas tomadas de decisรตes daquele ser havia algo de errado, mas sempre que iam lhe falar, eram tomados por um medo e uma timidez paralisantes. Suas formas de agir e de falar refletiam uma personalidade equivocada e truculenta.

Odiava Paulo Freire, Universidades, Ciรชncia, saberes. Os conhecimentos advindos da filosofia, sociologia, antropologia, pedagogia e de todas as demais ciรชncias, para ele, nรฃo tinham nenhum valor. Nรฃo entendia os motivos desse desejo infinito do ser humano de conhecer, de se libertar pela educaรงรฃo. Nรฃo aprendeu e nem lhe foi ensinado a olhar o outro como um universo infinito de possibilidades. Via as relaรงรตes humanas de forma hierarquizada: eu mando e vocรช obedece.

Quando lia uma notรญcia de jornal, de revista, ou quando tentava interpretar um fato de uma dada realidade, sempre tinha uma compreensรฃo parcial, equivocada e viciada. Se nรฃo extrapolava o que dizia a informaรงรฃo, a reduzia ou a entendia de forma contraditรณria. Mas, apesar disso, nรฃo se intimidava. Quando falava, expressava suas opiniรตes a todos os seus interlocutores, as quais, muitas vezes, nรฃo passavam de um monte de clichรชs enviesados, uma espรฉcie de verborreia que seu cรฉrebro jรก carcomido pela ignorรขncia compartilhava como se fossem pรฉrolas.

Sua dificuldade em entender as relaรงรตes humanas, sociais, geogrรกficas, polรญticas, econรดmicas era gritante. Nรฃo se sentia confortรกvel com o seu saber. Sua forma de entendimento era compartimentalizada, nรฃo conseguindo relacionar os mais fรกceis conceitos. Ficava indignado consigo e com o mundo quando ao ler um texto nรฃo conseguia compreender as relaรงรตes sintรกticas, semรขnticas, textuais e intertextuais. E entendia, muito menos, as diversas faces polissรชmicas que surgiam das interaรงรตes entre o texto lido e o texto vivido.

A gramรกtica, a lรณgica, a mรฉtrica, a oratรณria, enfim, todas as formas da boa comunicaรงรฃo eram, por ele, desprezadas. Jamais lia um livro. Sequer sabia soletrar Shakespeare ou Dostoiรฉvski. Nรฃo sabia quem eram Cervantes, Homero, Dante, James Joyce, Borges, Kafka ou Goethe. Nunca leu Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Lima Barreto, Drummond ou Guimarรฃes Rosa. Jamais folheou um Pablo Neruda, um Camรตes ou um Fernando Pessoa. Nada lhe era mais estranho do que uma peรงa de teatro de Brecht. Lia apenas manuais de armas, ficava horas admirando os desenhos.

Esse ser รฉ o representante do maior flagelo social que surge das entranhas de uma sociedade que insiste em nรฃo investir em educaรงรฃo, que vira as costas para as escolas primรกrias, secundรกrias e universidades, e para o saber e o conhecimento transformador do humano. ร‰ ele, o analfabeto funcional, o maior idiota de todos. Um pobre de leitura de mundo, pois nรฃo interpreta as questรตes mais bรกsicas de um texto, e jamais compreenderรก as questรตes mais complexas da vida e do mundo. Falta-lhe inteligรชncia e inteligibilidade para entender a plurissignificaรงรฃo das relaรงรตes humanas e da vida.

(*)Sociรณlogo, Cientista Polรญtico e Advogado.

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